Desde há muito que tenho em casa um piano. Mas só recentemente o meu filho mais novo decidiu que o nosso piano era o local ideal para praticar a sua música. E assim o fez, com toda a sua dedicação e força. Resultado… dezasseis teclas avariadas.
Depois de me informar acerca do que teria que fazer para reparar o piano, deram-me o telefone do senhor João Santos. Tem uma profissão invulgar, é uma espécie de médico de pianos. Liguei-lhe a uma sexta-feira, e percebendo a minha dificuldade em gerir uma agenda cheia e complexa, marcou comigo no domingo seguinte, às 16 horas, para fazer o diagnóstico. E no domingo às 16 horas cá estava o Santos, pontual, disponível, com um ar feliz, para verificar e levar o piano consigo para reparação. Como se trabalhar ao domingo fosse a melhor coisa do mundo…
Depois de fechar a porta, pensei em quantos Santos existem em todo o lado. Santos que andam por aí, disfarçados, de calças de ganga e sapatos gastos sempre prontos para nos resolverem problemas: do mais simples ao mais complexo.
Poderemos, com alguma ligeireza, assumir que os Santos trabalham todos por conta própria ou para pequenas empresas, e por isso estão sempre prontos e disponíveis para fazer mais um trabalho a qualquer hora. Mas nem isso é verdade nem sequer seria justo que assim fosse.
De facto, existem Santos em todas as empresas. Grandes, médias, pequenas. Nacionais e multinacionais. E são estes Santos, que, no silêncio, e muitas vezes com um enorme esforço pessoal, fazem avançar as suas organizações. Em comum têm uma característica interessante: não se queixam, fazem.
Os Santos trabalham todos os dias para si e para os outros, trabalham de forma incansável. Não é que não se cansem, simplesmente não desistem. Não é que não se aborreçam com a falta de recursos, simplesmente não desistem. Não é que não se revoltem por não terem as melhores condições de trabalho, simplesmente não desistem. Não é que não se importem por terem salários baixos ou pelo menos muito abaixo dos seus pares noutros países, simplesmente não desistem. E como estão sempre a tentar, não têm tempo para se queixar.
Vivemos tempos onde existe demasiado ruído, onde se prega mais do que aquilo que se faz, onde se aprende a mostrar em vez de ser. E esse ruído está a esconder uma importante mensagem. Uma mensagem que não está escrita em lado nenhum: O segredo para ser bem sucedido é trabalhar muito, mais e melhor, sem se queixar.
E é também o segredo mais difícil de se espalhar, porque ninguém quer saber dele.
Aquilo que as pessoas querem ouvir é que podem vencer na vida a trabalhar pouco.
O que é uma grande mentira.
Num país onde os recursos não abundam e as condições de trabalho estão longe de ser as ideais, ou, pelo menos, de se aproximarem às dos países com quem gostamos de nos comparar, existem portugueses que se distinguem por esse mundo fora — na Banca, em IT, em Telecomunicações, em Medicina, em Design, no Desporto ou na Música. Quando ouvimos falar deles nos noticiários ficamos surpreendidos. Às vezes ficamos orgulhosos. Outras vezes pensamos que tiveram sorte. Esquecemo-nos sempre é do que é preciso para lá chegar e ter sorte… o sacrifício pessoal, o esforço, as horas roubadas à família e a si próprios. Anos de esforço, de investimento, de dedicação, de autodidatismo, de treino intenso. Anos a compensar “a falta de condições“. Anos de nunca desistir. De persistir perante as dificuldades. Como aquela gestora de uma grande multinacional, com quem colaboro, que foi para Londres para uma sessão de trabalho num estado que ela definia como de pré-morte. Arrastou-se da cama para o aeroporto, mas durante a viagem pôs-se boa. Ou a directora de marketing que, dois dias após ter sido submetida a uma cirurgia, veio para Portugal gerir o evento de 400 pessoas que estava à sua responsabilidade. Ou o consultor que foi para Madrid iniciar um projecto com um síndrome vertiginoso ativo. Porque não ir não era sequer uma opção. E eles vão, e não quebram, e não se queixam e não esperam palmas nem prémios, nem promoções. Às vezes são reconhecidos, outras vezes não. Mas não é por isso que vão. Eles vão porque têm alma de artista e não de funcionário. São atletas de alta competição. Não quebram no momento crítico. Aquele momento que fará toda a diferença no futuro, o momento em que a vida pode passar a ser melhor. O momento em que os Santinhos desaparecem, para não assumir culpas de qualquer coisa que correu mal, e alguém se lembra do Santos que se calhar pode ajudar a resolver o problema…
Se existe uma característica que todos precisamos de desenvolver para o novo mundo da incerteza é Resistência. Sim, Resistência pura e dura. Resistência física e Intelectual. Resistência para aguentar as tempestades, resistência para continuar a acreditar, para não parar e ficar a queixar-se da falta de condições e de recursos e da chuva e do governo…
Os santos, no passado, sempre foram pessoas que se distinguiram por fazer milagres. Hoje, numa altura em que já ninguém acredita em nada, muito menos em santos, são os novos Santos quem nos vai dando ânimo para continuar em frente. Fazem-nos acreditar, mais com o seu exemplo de vida do que com palavras. São os Santos que estão sempre lá para nos ajudar, para não deixar a casa vir a baixo. São os Santos que ainda ficam a trabalhar quando todos os outros já se foram embora.
São os Santos que fazem muitas das grandes empresas ultrapassar as suas ineficácias.
Nunca precisámos tanto de Santos como agora. Recrute um ou vários Santos. Se tiver algum a trabalhar consigo, erga-lhe um pedestal. Trate-o com tal, pois eles fazem mesmo milagres.
Obrigado a todos os Santos. A todos aqueles que, mesmo sem serem santos, são os que nos fazem acreditar que é possível, apesar de tudo, chegar ao pódio.
Lúcio Lampreia
Design Ana Serra