Muitas pessoas não terão lido Moby Dick, de Herman Melville, mas serão muito poucas as que desconhecem a extraordinária saga do Capitão Ahab, o obcecado comandante do baleeiro Pequod que dedica toda a sua vida a perseguir a enorme baleia branca que um dia lhe roubou a sua perna. Moby Dick é mais do que uma baleia branca, representa todas as lutas insanas por um objectivo irrealista, desadequado e muitas vezes fatal para quem o persegue. É o delírio que serve para justificar todas as jornadas irracionais e suicidas. O capitão Ahab foi vítima da sua obsessão por Moby Dick. Muitos de nós somos vítimas da obsessão por um trabalho que pode ser hostil.
Sempre que penso em Moby Dick, penso no Tiago. É inevitável, ele não me sai do pensamento e do coração. Conheci-o em 2009. Na altura, o Tiago era diretor de área numa grande empresa e queria ajuda para desenvolver conhecimentos em técnicas de comunicação e apresentação em público. Até aqui nada de novo, pensei. Até que conheci pessoalmente o Tiago. Para além de ter uma gaguez bastante acentuada, o Tiago tinha problemas de locomoção e expressão. No início, até tinha dificuldade em entender o que ele me dizia.
Interroguei-me se seria a melhor pessoa para o ajudar. Não seria preferível procurar um terapeuta da fala? Mas… como estudei canto no conservatório e conheço algumas técnicas de voz, percebi que seria capaz de fazer face ao secreto pedido de ajuda que vinha disfarçado de trabalho.
Com as primeiras sessões fomo-nos conhecendo melhor. Descobri que o Tiago vinha de uma família abastada, tinha feito o curso a pulso e subido na hierarquia da empresa até ter conquistado o seu lugar de diretor. Mas agora tinham-lhe feito um ultimato: ou melhorava as suas competências de comunicação em seis meses ou era despedido. Para mim essa era uma informação nova que veio colocar mais peso nos meus ombros. Fui claro em relação aos resultados e decidimos que trabalharíamos de forma intensiva, como eu nunca o tinha feito. Foram seis meses de treino duro, mas o milagre começou a acontecer. O Tiago melhorou bastante da gaguez, trabalhou muito para superar as suas dificuldades e eu fiquei feliz por ter ajudado aquela pessoa. Mesmo depois de terminarmos o trabalho mantivemos contacto regular, pois ficámos amigos. Ele ligava-me todos os meses só para saber como eu estava e no Natal vinha ter comigo – morava longe de Lisboa – e oferecia-me sempre uma garrafa de um bom vinho tinto. Nunca esquecerei um Chryseia de 2003 que me ofereceu pelo Natal.
Acontece que o Tiago conseguiu superar a sua prova de comunicação mas falhou a prova do preconceito. Uma mudança na organização onde ele trabalhava levou a que se iniciasse um verdadeiro processo de perseguição, de ataque às suas fragilidades pessoais, à sua existência de ser humano menos protegida. Determinado em vencer a injustiça e provar que tinha valor, Tiago lutou com todas as forças e foi ultrapassando os obstáculos que lhe colocavam no caminho, sempre com excelentes resultados, sempre obstinado. Mas o desgaste dessa violenta luta ia deixando marcas físicas e emocionais.
Acabou por sair da empresa, com o corpo e o coração cheios de mágoa. Tinha perdido peso e sofria de insónias, mas não ia baixar os braços. Procurou novos desafios e em breve estava noutra empresa, num lugar de chefia. Nesta nova empresa foi muito bem tratado. Mas o mal já estava feito. Telefonou-me um dia à noite, a chorar. Perguntei-lhe o que se passava. “Tenho um cancro no fígado”, contou-me. Recompôs-se e afirmou que, como sempre, iria lutar e vencer. Nesse dia, e apesar da terrível noticia, ele queria falar-me de outra coisa: tinha sido convidado para fazer uma apresentação para 600 pessoas e, apesar da doença galopante, queria preparar-se e precisava da minha ajuda. Não hesitei em ajudá-lo.
Na semana seguinte, estranhando o seu silêncio, liguei, liguei, liguei… mas não tive resposta. Fiquei apreensivo. A triste notícia chegou ao fim do dia, pela voz da sua mulher. O Tiago tinha partido. E a sua companheira estava revoltada com o sentimento de que foi aquela empresa, aquela luta que o matou…
Todos sabemos que o trabalho é bom para nós. Que estar empregado é um factor central para o nosso sentimento de bem estar e de felicidade. Que nos mantém ativos e integrados socialmente. Mas e quando não é assim? Quantas vezes não nos sentimos tristes e pouco valorizados, com vontade de mudar? O seu trabalho ainda é um desafio interessante e estimulante ou é uma Moby Dick com quem trava diariamente uma gigantesca luta? Vale a pena manter essa guerra todos os dias? Cabe-lhe a si decidir se a luta por esse trabalho vale ou não a sua vida.
Lúcio Lampreia
Design Ana Serra
nota: nome e data foram alterados para manter o anonimato dos intervenientes.